segunda-feira, 7 de março de 2011

À laia de... cusquice (16)

"Histórias de... viagens (01)

CABO VERDE

Já Agosto de 1993 ia quase a meio, quando me vi perfeitamente sozinho no mundo. Um mundo que, apesar de diminuto – porque circunscrito ao nosso metro quadrado -, não deixa de ser o líquido vital da nossa existência, e é como que um prolongamento de nós próprios.
O homem é, por definição mais elaborada, um ser crente e actuante dentro das suas circunstâncias. Vive em consonância ou rotura com o ambiente que o rodeia, consoante tenha ambições de se impor, lutando, ou apenas de subsistir, sobrevivendo. O povo, na sua insigne sabedoria de vivência feita, diz que de santo e de louco todos temos um pouco. Permitir-me-ia completar a ideia reafirmando o provérbio que nos diz que “dos fracos não reza a história”. E quem vai para a guerra vencido, já estava acabado antes de ir.
Pois, mas o último dos meus filhos tinha abalado para outro ninho, e a minha cara-metade, os meus pais, e os meus sogros já haviam passado a ponte, pelo que me vi na vida como estátua sem peanha.
E fui até Cabo Verde.
Marquei passagem aérea desde o Porto, o que, então, ainda me fazia passar por Lisboa. Voei na TAP desde o Porto, e na Portela embarquei num aparelho da LIAM (Linhas Aéreas de Moçambique), depois de um “check-in” inenarrável. Desde logo, pela autêntica feira da ladra que se vivia no local. Depois pela demora mais que excessiva dos serviços. Mas, para agravar as coisas, havia imensos passageiros à procura de “boleia” para levar pertences que lhes excediam o permitido. E a mim, que já despachara a “mala” directamente em Pedras Rubras e, portanto, não exibia bagagem que se visse, tocou-me ser largamente assediado nesse sentido, acabando por consentir mais uma “valise” de não sei quem. Ao que me expus!...
Após pouco mais de três horas de voo, acabamos por aterrar no Sal ao som das tão normais quanto incompreensíveis palmas. A viagem fora óptima apesar da inexistência de qualquer filme ou vídeo de “passa-viagem”, e só uma turbulênciazita no enfiamento da pista nos recordou estarmos no ar. Mas a chegada, Deus meu, pareceu-me um aterrar num qualquer pátrio aeródromo particular da altura. Pastas sobraçadas, câmaras de filmar a tiracolo e malas dependuradas, alguns de rádio aos ombros, saímos do aparelho e chegamos a butes ao desalfandegamento sob a vigilância de um qualquer agente da autoridade fardado a rigor, armado em mau mas de físico “acriançado”. Vocês sabem ou imaginam, a modos de não poder com um espirro!... E veio o desembaraço das malas, com outro qualquer polícia a olhar-nos de viés, como se de malfeitores nos considerasse. E eu, que só tinha emprestado espaço para mais uma malita, senti-me um bocado inseguro e culpado, e nem sobrevalorizei o incómodo de ter de esperar pelo desembaraço do que nem conhecia!...
Saí de mais malas penduradas e topei o meu “agente” no meio de mais de uma dúzia deles, porque exibiam um dístico acima da respectiva cabeça. A minha primeira impressão foi a de que havia chegado ao cú de Judas. Um ermo de todo o tamanho! Houvera um sinal de marcha-atrás… e não hesitaria, não senhor!... Identificados ele e eu, lá me encaminhou para uma carrinha Peugeot de caixa aberta a precisar de reforma urgente. Veículo que em Portugal já só os sardinheiros e os sucateiros usavam, o que lhes homenageia a durabilidade. Na caixa de carga três escabéis corridos, onde já tinham assento pouco mais de meia dúzia de nativos. Eu dividi o lugar no banco da cabine com outro concidadão, conforme me pareceu na altura, e vim depois a confirmá-lo duas ou três vezes. Uma, no voo para a Boavista, outra no Praia-Mar Aparthotel, e uma outra no Mindelo, em São Vicente. Pouco mais de meia hora depois chegamos a um portal onde o guia nos disse ser o Belo Horizonte. Pelo caminho topáramos apenas um rebanho de meia dúzia de cabras escanzeladas, que o motorista procurou não incomodar porque, dizia, as peças para a “camineta” ou não as havia, ou eram de preço proibitivo.
Malas a reboque saí do “autocarro” que ainda iria para o Piscador e para o Morabeza, e após um parquezito de quatro ou cinco bicicletas a pedal logo cheguei à recepção.
Uma agradável surpresa! Pela beleza e trato das recepcionistas e pelo desembaraço das mesmas. “Bungalow” marcado, haveria que desfazer as malas. Que raio! As malas não se desfizeram, graças a Deus, e ainda me viriam a servir para o resto, incluindo o regresso!...
Inspeccionada a “habitação” – quarto de duas janelas, com mini-bar e banheiro… -, toca de aliviar necessidades, tomar um chuveirinho (que a água, segundo o aviso afixado, só iria faltar por volta das dezanove horas locais…), mudar de roupa e dar uma espreitadela para a praia de Santa Maria, cujo areal logo ali começava. Calções, sapatilhas e chapéu foi o “fardamento” escolhido, e ala para as salsas ondas.
Areia óptima, nem grossa nem fina, branquíssima, e, até onde a vista alcançava, meia centena de “praieiros” a chapinhar nas ondas ou deitados nas respectivas toalhas a apanhar sol. Toalha que eu não levava. Fui descendo através dos veraneantes em direcção ao mar, admirando o tamanho que as vagas exibiam ao longe, mas que vinham beijar mansamente a praia desfeitas em espuma, quando uma rabanadita de vento me arrancou do toutiço o chapéu (“Portugal”, com a esfera armilar e as cores verde rubra estampados), e mo atirou para perto das ondas, obrigando-me a correr para o caçar. Saí de lá com o chapéu todo molhadinho, as sapatilhas encharcadas, o calção e os “sleeps” totalmente ensopados. Foi o meu primeiro banho cabo-verdiano!... Mas a água estava divinal!...
Sem toalha, regressei ao “bungalow”, mudei de calção, “interiores” e ténis e fui até ao Bar do hotel. Observei disfarçadamente a piscina e os solários, uma e outros bem afreguezados, e entrei no bar. Muita coisa, mas nada para o meu gosto, nem a pantalha televisiva de incipiente qualidade me seduziu. Pedi um gin tónico e andei com ele na mão a beberricar e a mirar as instalações e o ambiente, detendo-me junto à mesa de ping-pong onde duas “nativas” davam um show de algo parecido. Fui admirar as cabeleireiras a “enripar” o cabelo de uma ou outra turistas mais “p’ráfrentex”, e por ali passei o resto da tarde.
Ao jantar, fui na lagosta. Mas, quão diferente da nossa portuguesíssima!... Sabor a águas salobras, quando a nossa sabe a sal, sabe a mar!... Para beber, cerveja Cercal que é feita, diziam, da nossa lusa “cintral” Água do Caramulo, aliás a única potável para além da água tónica, a tal que só se bebe com gin, e cuja combinação me veio a dar cabo da “mánica”!... O vinho verde, vim depois em má hora a prová-lo, era “Casal Mendes”. Uma mixórdia que degrada o vinho e o país. Era melhor venderem vinagre com água e açúcar. O serão não existiu. A televisão, incipiente e de notícias recessas, os “humanos” do hotel ainda desconhecidos. Valeu a “baby siter”, agora liberta da missão para que é paga. Creio eu, que até sou crédulo em demasia!... Perguntou-me se se podia sentar à minha mesa, ao que acedi de bom grado, e dispus que se servisse do que desejasse. Linda de morrer. Relativamente baixa mas muito bem constituída e não um molho de ossos como eu, mas maneirinha, tez dourada e bem cheirosa, foi uma óptima e barata companhia de duas horas e promessas para mais. Falamos de tudo, porque ela percebia de português. Eu é que não percebia ainda patavina de crioulo!...
E fui dormir sozinho!...
Pelas sete horas da matina já estava a chapinhar nas ondas, depois de ter passado cinquenta metros de praia com campos de vólei e de guaarda-sóis cobertos a colmo e folhas de palmeira ou de coqueiro. Pelas oito tomei o pequeno almoço, a que se seguiu a “descoberta do ambiente”. Sorte minha, apareceu-me uma família conhecida aqui de Pousada de Saramagos partilhando os mesmos “bungalows” do Belo Horizonte, e com quem já tinha relações. Pena que estivesse no seu último dia do Sal!...
Descobri a “moça” de ontem à noite, mas não me deu muita trela. Estava a trabalhar. À socapa consegui perguntar-lhe por “miúdas”, ao que sorriu e me remeteu para mais logo. O resto nem interessa pormenorizar: Foi minha companhia nos restantes dois dias/noites em que estive no Sal.
Do Sal fui para a Boavista, num voo de pouco mais de quinze minutos ao anoitecer. Recordo a fila de nativos no Aeroporto do Sal à espera de “vaga”, que não aconteceu, da mesma forma que lembro a catrefada de coisas que cada possível passageiro levaria, desde cestos de frangos a leitões em saco, tudo vivinho da silva, e a canastras de peixes a exalar já um carto odor!...
Fiquei na Boavista só parte do dia seguinte, pelo que nada tenho a referir. Mais tarde voltarei àquela ilha com mais tempo, tanto mais que as “boavisteiras” – douradas, bem feitas e belas – me intrigaram.
E no dia seguinte, pela tardinha, da Boavista voei para Santiago por entre uma chusma de indígenas de ânimo exaltado que não lograram lugar no voo. Pouco mais de meia hora depois aterrei no aeródromo da Praia, capital de Cabo verde, já noite incipiente. Recordo aquele “tolinho-armado-em-político-local-em-campanha-eleitoral”, todo vestido de branco, embora de fato barato e amarrotado e camisa aberta de colarinho arrebitado, a barafustar em altos berros contra o governo, por causa dos estrangeiros que, lá por terem dinheiro, eram bem tratados e acarinhados. Pensei que ia haver “restolho”, tanto mais que eu apenas exibia uma mala, vestia calção e camisa de poliéster colorida e calçava sapatilhas sem marca. Estacou à minha frente e parou a prosápia, desarmado com toda a certeza pelo meu sorriso zombeteiro. Sim, porque eu não estava para armar aos heróis, nem para estalo tenho físico. Salvou-me o representante da Soltrópico que se me identificou e me pediu para não ligar ao “maluquinho”. Atravessamos a cidade velha e fomos para a outra ponta de Santiago, onde fiquei alojado no Praia-Mar Aparthotel, depois de ter combinado com o guia que às seis e trinta da manhã me viria buscar para um giro pela ilha. Jantei no hotel a mesma lagosta de sempre, sentindo-me examinado ao pormenor por um fulano cujas vestes o pareciam tornar num general ou algo no género, e estava ali como se fosse o rei daquilo. Pareceu-me português, mas não estive para meter conversa, nem lhe dei tempo para isso, porque, finda a janta fui logo para o apartamento, por sinal muito bom mas cheio de formigas. A noite passou-se num ai, e de manhã, muito antes da hora marcada, já eu tinha a mala que não desfizera no átrio do hotel à espera do guia. Entretanto, fui observando o mar e ouvindo o ruído surdo das ondas batendo numa gruta natural, ribombando como trovão. Fui ver mais de perto, e notei haver por ali apenas uma capela/igreja que depois o guia me informou ser um seminário católico. Não entrei, porque não vi viva alma e as portas ainda estavam encerradas apesar de já ser dia claro. E, mais ou menos à hora marca, apareceu o guia na sua “Toyota Hiace” já com três casais a bordo, alguns de máquina de filmar às costas e fotográfica dependurada ao peito, bem ao jeito do turista português. E embarquei para uma visita a Santiago.
Iniciamos por uma visita a uma loja de artesanato e seguimos para o jardim botânico, onde o Zèzinho, o nosso guia, retirou de um laguinho de águas sujas paradas uma tartaruga de certo porte para que a pudéssemos admirar. Dali pouco “levámos” porque o artesanato era muito pobrezinho, e ao jardim botânico faltou-lhe um cicerone. Seguimos em direcção a Assomada passando à esquerda da praia de São Pedro, segundo nos disse o guia, mas que não logramos descortinar. Passamos Assomada onde quase vimos o respectivo mercado, e chegamos ao Tarrafal, mais propriamente à sua praia. Pequenina baía, familiar, com uma palmeira caída a servir de banco e de baloiço. Lá tivemos a honra de encontrar Sua Excelência o Senhor Presidente da República de Cabo Verde, Dr. Mascarenhas, e sua Excelentíssima esposa a tomar banho. Alguns dos meus companheiros iniciaram uma aproximação, que se concretizou, e passamos um bom bocado em amena cavaqueira, tendo obtido do Senhor Presidente uma interessada atenção, não se coibindo de nos agradecer a visita e concedendo-nos liberdade para visitar a antiga prisão do Tarrafal, para além de dela nos contar a história post-independência. Juntámo-nos no banho à família presidencial, mas à areia límpida da praia sucedeu-se o preto da lava que forrava o areal mar adentro. Perto da meia hora e já muito depois da despedida que o Senhor Presidente nos deu deixamos a praia e subimos em direcção à Tátá, restaurante onde aprazáramos almoçar. Todavia, antes de lá chegar topámos uma chusmas de miúdos e miúdas em esmoler atitude por um tostãozinho, de que nos livramos a custo e em troca de alguns escudos em moedas jogados à criançada para disputa.
Saímos do restaurante e fomos até à prisão de triste memória, situada quase em frente do palácio presidencial. Entramos por um portão atravessando o fosso, e logo nos encontramos no meio de construções e restos de construções abarracadas dispersas, guardadas por acácias espinhosas que o vento enformara ao seu sabor. O guia lá nos foi dizendo que aqui era isto, ali era aquilo, aqui um fulano foi preso à acácia e deixado à inclemência do tempo, além eram as solitárias com telhado baixo e de zinco, onde só cabia um preso em cada cela, daí se lhe chamassem torradeiras. O fosso era profundo e tinha paredes em restel, dizendo-nos o guia-feito-cicerone que “in illo têmpora” teria estado sempre com muita água onde nadavam crocodilos!... Depois da partida dos portugueses havia sido transformado primeiro em quartel militar, e depois em cadeia comum, pelo que aquele aglomerado já não mostrava quase nada do que fora quando prisão política do governo português.
Ensimesmados saímos dali em regresso à Praia, mas ainda admiramos o sisal que nasce e cresce maninho. Os coqueiros a que rapazes e raparigas trepavam agilmente em troca de umas moedas e nos atiravam o respectivo fruto, que nem queríamos porque já estavam secos. E se distribuíamos moedas era mais para ver as gâmbias e não só às garotas e admirar as habilidades dos putos. Visitamos um extenso bananal onde nos foi explicado o ciclo de vida espectivo:- Talo, cacho único, maturação/desenvolvimento, colheita e corte do talo, deixando ficar o rebento. E assim de meio em meio ano. Mas que as bananas cabo-verdianas são magníficas, lá isso!... Pequeninas mas gordinhas e muito saborosas. Entramos numa tasca para provar o grogue, e recebemos explicação de como era obtido, e que o melhor era o de Santo Antão. Logo após passamos numa azenha onde essa aguardente de cana estava a ser obtida, o que nos fixou no bestunto as explicações antes recebidas. Apreciamos os diversos muitos ranchos de mulheres e crianças carregando todo o tipo de vasilhame para buscar água potável, um bem muito escasso naquelas ilhas, e admiramos as represas rudimentares para conservar/armazenar as águas da chuva, raríssima, também, infelizmente. Admiramos os enormes bandos de “Bicos-de-Lacre” e o voo lindo dos “Passaritos” e vimos meia dúzia de vezes os macaquitos nas entradas das casas como se delas fossem guardiões. E chegamos a “casa” (Praia-mar Aparthotel) para jantar e dormir, porque o avião para São Vicente partiria às sete e meia e era preciso estar lá uma hora antes para o check in sob pena de não nos manterem as reservas.
Depois de uma noite sem sonhos levantei-me com as galinhas, ou seja, ainda as seis horas não tinham batido, e fui ao bar tomar o pequeno-almoço e liquidar as contas. Saí directo para a carrinha que me iria levar ao Campo de Aviação, onde fui dos primeiros a chegar. Dos primeiros, é como quem diz!... Dos primeiros com a viagem marcada!... Que de candidatos a vagas eram mais que bastantes para preencher outro voo. Logo fiz o check in e entretive-me a ouvir a para mim algaraviada do crioulo, com os candidatos a perguntar por lugar de meio em meio minuto para desespero da moça disso encarregada. Era preciso ter fibra!... Também as diferenças de cor e de fácies me intrigou, porque se misturavam os badios de Santiago, de tez escura e um tanto oleosa, com o dourado dos da Boavista e os mais brancos do Sal, para além de outros tipos que não fui capaz de distinguir. Entre umas e outras verificou-se o embarque ao som de despedidas esganiçadas e gritinhos de desespero dos que não conseguiram lugar.
Três quartos de hora mais tarde aterrávamos em São Vicente, e, na forma do costume, lá me confiei ao guia que, por acaso, era taxista. Rapidamente chegamos ao Mindelo, onde me recolhi no Avenida Aparthotel depois de me informar sobre o melhor sítio para almoçar e de aprazar para o dia seguinte uma expedição para conhecer a Ilha.
Apartamento pequenino mas óptimo, de uma cama só e com vista para a baía, o Monte Caras e a ilha de Santo Antão, com “mini-bar” e casa de banho dotada de “poliban” e de chuveiro. E o que mais admirei foram os reposteiros fabricados exclusivamente pela fábrica portuguesa onde presto serviço!... Roupas aligeiradas depois de refrescante chuveirada, toca de subir a Avenida Lisboa à procura do Sodade. Que ficava para além do palácio do Governador, este, aliás, a ocupar totalmente a placa central da Avenida. O Sodade ficava-lhe logo a seguir, e não há dúvida nenhuma de que fui bem servido e por preço acessível. Dei mentalmente graças ao guia Eduardo pela dica e dispus-me a explorar esta parte do Mindelo. Calcorreei a avenida, admirei montras e farmácias, vi restaurantes e tascas e cheguei ao mercado borbulhante. Tomei nota para ir jantar ao Cordel, porque o nome se me insinuou, e entrei na Igreja para me recolher alguns segundos, pois ainda não tinha visitado “O Chefe” desde que saíra de casa. Ainda não me tinha ajoelhado no banco, e logo um velhote agarrado a um pau feito bengala se me aproximou a pedir uma esmola. Dei-lhe uma nota de dez escudos e fiquei fascinado com a sua cara de felicidade. O pior foi logo a seguir, quase imediatamente, porque a Igreja foi invadida por uma catrefada de assediadores pedintes. Só me “livrei” deles saindo e deixando-lhes ficar as moedas que possuía!... Qual reza, qual recolhimento, qual carapuça!... Desci para o Hotel e dei-me ao luxo de uma sesta. Acordei já noite e, tal como tinha resolvido, fui até ao Cordel, distante trezentos ou quatrocentos metros. Pouca gente como freguesia, meti conversa intimista e fui no aconselhado. E fiz bem, porque saí bem composto. Desci novamente e resolvi dar uma vista de olhos pela baía, que já admirara do quarto do hotel. Que se encontrava cheia de nativos a arrumar barcos, a recolher pertences, a lavar armazéns e a amanhar peixe à beira-mar, ali mesmo junto à miniatura da Torre de Belém erigida em homenagem aos Bravos do Mindelo”, e ao monumento a Gago Coutinho e Sacadura Cabral. Entrevi o barco de ligação a Santo Antão e apercebi-me da silhueta do Monte Caras. De um momento para o outro senti-me estranho. Olhei em redor e nem viv’alma. Todos se tinham escapulido. Dei uma espiada no relógio. Marcava vinte e vinte. A iluminação continuava acesa e, como desconhecia os hábitos da população nativa, estuguei o passo. Já nas trazeiras do hotel comecei a divisar luzes que se acendiam e música de mornas e coladeiras na sua plangente toada. Detive-me. Daí a nada uma voz se fez ouvir em ensaio. Escutei. O sono era ainda suportável, pelo que resolvi dar uma espreitadela no Bar de onde vinha a música e a voz. A medo, entrei. Dirigi-me ao balcão e pedi uma Cercal. Disseram-me que também tinham Sagres e Super-Bock, mas não quis. Perguntei como é que “aquilo” funcionava e explicaram-me num misto de Português-Crioulo que entendi perfeitamente. Não conhecia ainda a Diva, que dava pelo nome de Cesária Évora, se encontrava descalço, vestia descuidadamente e tinha voz de quem não gostava nada de álcool e tabaco, mas resolvi ficar. Pedi uns caranguejos e uma cachupa, tomei assento numa mesa pequenina que fizeram o favor de me dispensar, e dispus-me a passar alguns bons momentos. E não me arrependi. Para além de me ter saído barato, adorei aquelas dolentes cantigas que tão bem se plasmam na portuguesa saudade. E nem foi só aquela cantora, porque o Tito Paris também meteu o bedelho e nos extasiou. Saí de lá por volta das vinte e três com a alma lavada e pensamentos íntimos elevados. Dormi como um anjinho e acordei por volta das sete da matina.
Higiene íntima, chuveirada e pequeno almoço, findo o que liguei ao guia-taxista que me apareceu dez minutos depois para a tal expedição para conhecimento da ilha. Começamos pela Baía das Gatas, a praia que anualmente em Agosto anda nas bocas do mundo por causa do seu festival. Admirei a amplidão da praia e o seu deserto habitacional, e fui bebendo as informações do senhor Eduardo. Corremos outras partes da ilha, mas que se me revelaram pobres e desabitadas. E nem se viam as filas de gente armadas de todo o tipo de vasilhas para recolha de água potável. Alguns coqueirais, sisal e acácias. Fomos ao Aeroporto e chegamos à praia de São Pedro, tendo dali regressado ainda não era meio-dia. E víramos toda a ilha!...
Almoço ainda no Sodade e tarde de descanso e de exploração do Mindelo e da sua população, que dizem ser a mais parecida com a portuguesa. Observar a pesca, a luta das cascas-de-noz com as ondas, o amanho ágil do pescado em plenas rochas marinhas, o Monte Caras onde só por muita imaginação se distingue um homem deitado, e o vulto da ilha de Santo Antão a que se acedia por barco, mas que não vim a efectuar Jantar de novo no Cordel e final no tal barzinho, de onde me retirei mais ou menos à hora de ontem, visto ter combinado para amanhã uma tempinho de praia na dita de São Pedro.
E assim sucedeu. Mas foi uma desilusão de todo!... Uma baía abrigada por uma montanha nua onde pontuava apenas uma casa no seu extremo à laia de vigia avançada. Onde mais adivinhei que vi habitantes, sem qualquer infra-estrutura, ostentava apenas uma língua de areia que fazia de rebentação do mar largo, tal como a nossa belíssima Moledo. Mas o seu leito nada tinha a ver. Era de lava preta coberta de ténue camada de areia grossa e rude, que não só não nos motivava para um banho repousante, como muito menos para um chapinhar nas ondas. A sua margem estava infestada de vegetação tipo giestas e de espinhosas acácias, com o solo coberto de espinhos enormes que quase vazavam a sola dos ténis, e núvens de moscardos atrevidos que nem as chicotadas da toalha temiam!... E tinha quase duas horas para suportar “aquilo”!... Só me restou recorrer à paciência e explorar o espaço para matar o tempo, altura em que descobri alguns panos e oleados atados às acácias em jeito de tendas e com sinais de estarem habitualmente habitadas. Nem sei como passei o tempo, mas foi um alívio quando avistei a chegada do táxi do senhor Eduardo a quem não contei nem da missa a metade, tão pouco exposto a minha desilusão. Resolvi passar a tarde pelo Mindelo, porque no outro dia teria de voar para o Sal por volta das tais sete horas. No entanto, a seguir ao almoço senti-me indisposto e recolhi ao hotel, refugiando-me debaixo do chuveiro. Senti as minhas costas todas empoladas e a largar água quando friccionadas, o que me levou a pensar ter apanhado um escaldão ou uma insolação. Deitei-me atravessado na cama, e só acordei às dezanove horas e tal. Fiquei alarmado. Fui jantar e deitei-me de seguida.
Depois de uma noite reparadora e sem sonhos acordei bem disposto, arranjei-me e vesti o “fato” com que iria presumivelmente chegar a Portugal, fechei as malas, tomei o pequeno almoço e liquidei as contas, dispondo-me a esperar pelo transporte até ao aeroporto. Que, entretanto, chegou.
O avião partiu à hora marcada e cumpriu o horário de chegada ao Sal, onde destroquei o dinheiro cabo-verdiano por escudos portugueses e fiz o chek in e de onde saímos pelas dez e trinta horas locais. O almoço (se é que “aquilo” se pode chamar almoço ou, sequer, comida…) foi feito a bordo, e depois de uma boa viagem chegamos a Lisboa, onde desembarquei e esperei ligação ao Porto. Que só tive por volta das vinte horas num voo vindo da Madeira e que escalou Lisboa. E assim terminou uma viagem que me deixou gratas recordações e que, por isso mesmo, prometi repetir.
2011.02.26

1 comentário:

  1. Depois de lermos tudo isto ficamos com água na boca, talvez mais correcto será dizer, com uma vontade de voar até àquelas paragens.

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