domingo, 27 de fevereiro de 2011

À laia de cusquice... (17)

O ÚLTIMO VOO DO “PAULISTINHA”

Corria o ano de 1971.
Não que tivesse sido por uma qualquer campanha promocional, porque nem era usual nessa altura, mas a verdade é que “O Retiro do Caçador” se tornou conhecidíssimo entre a malta “aérea” de Pedras Rubras.
Tratava-se de uma casa de comes e bebes sobranceira à margem direita da estrada para quem chega de Braga a Terras de Bouro, logo abaixo do campo de tiro, a ponto de se ouvirem com clareza os chumbos dos cartuchos deflagrados a cair no telhado.
À entrada de Terras de Bouro e antes de se encontrar o centro nevrálgico da povoação, tinha por especialidade o cabrito. E era tão apreciado, que não havia pela Invicta cidade amantes do ar que o não quisesse provar. Eu, pessoalmente, já lá abanquei algumas vezes e levei amigos, quer antes quer depois do 25 de Abril de 1974.
Lembro-me especialmente de uma dessas vezes, no verão de 1974, em que depois de bem comidos e bebidos subimos ao campo de tiro e alguns resolveram experimentar a pontaria das pistolas nas pinhas bravas, bem antes da sessão de tiro aos pratos com caçadeira. Não sei se por efeito dos eflúvios báquicos ou se por mania de imitação, já que os nossos “heróis militares” teriam resolvido há bem pouco tempo desenferrujar as metralhadoras numa simples caça ao melro, ali pelas cercanias do aeródromo de Vila Real. E, depois, a caça à laverca também não se fazia com caçadeira!... Estou, porém, em crer que teria sido dos “calores”, quando não, não se teria brincado a atirar uns aos outros toros de pinheiro!...
Pois, escrevia eu, não havia bicho careta que frequentasse as instalações do Aeroclube do Porto que num ou noutro fim de semana lá não tenha estado a saborear o cabritinho e a passar parte da tarde.
No Aeroclube havia vários aviões ligeiros destinados à instrução para PPA (piloto particular de aeronaves). Tratava-se de “Austers” e “Piper-Cubs”, a que por gozo chamávamos “mijotas” e “ferraris”. Eram normalmente de dois ou quatro lugares, e serviam-nos na perfeição para umas gracinhas aéreas, umas sobrevoadelas à “parvónia” ou uma visitinha à prima, porque o Aeroclube também os alugava aos sócios quando da inexistência de alunos.
Ora, entre esses “teco-tecos” havia um que dava particularmente nas vistas e que caía no goto quer dos instruendos, quer dos já comandantes. Era um bilugar de origem brasileira, o “Paulistinha”. Longarina de madeira e nervuras cobertas a lona endurecida, já não lhe sei a matrícula, nem nele voei. O que recordo são muitas das inúmeras aventuras que à sua pilotagem atribuíam, e que muito contribuíram para a sua saga.
Pois aconteceu que num daqueles Sábados em que se aprazara uma cabritada em Terras de Bouro, dois dos habituais comparsas não puderam comparecer. Um, por razões de trabalho, outro por outro qualquer motivo. O certo é que ao início da tarde se encontraram no Aeroclube, no Aeroporto de Pedras Rubras, como sempre religiosamente faziam. Nessa tarde, porém, em vez de apreciar os aviões, dar duas de treta ou disputar uma cervejita ao poker de dados, um deles desafiou a companhia do outro para sobrevoar os comensais do almoço, até para dizerem presente. Da ideia à sua concretização foi um ai. Toca de requisitar o Paulistinha, preencher a caderneta de voo, apresentá-la para despacho no “movimento”, e aí vão eles, os nossos heróis, cavalgando o vento em direcção a Braga e dali a Terras de Bouro. Tudo nos conformes, abanaram repetidamente as asas em sinal de reconhecimento aos blusões agitados em terra e deram-se ao gozo do instante.
Azar dos diabos. Logo haviam de existir uns fios de alta tensão a atravessar a estrada. Os postes estavam escondidos entre a vegetação de um e de outro lado, e logo havia de ser a avioneta a rompê-los e a ficar sem controle, despencando-se de rodas para o ar sobre uma ramada que ficava logo abaixo da estrada. Os deuses não reclamaram vítimas e as escoriações dos tripulantes bem depressa foram remediadas. Os fios foram emendados e lá estão para “recordação”. O “Paulistinha”, esse fez a sua última viagem na carroçaria de uma camioneta de carga rumo ao seu desaparecimento e à lenda que o envolve.
Em memória do seu último piloto, o meu amigo Comandante José Manuel Fragoso, entretanto falecido, e sepultado no cemitério dos Arcos, em Braga.
2011.02.23

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